Sonhos Ceifados Bem apanhado, atlético, simpático, educado e muito falante Abelardo era o que nos anos setenta as garotas casadoiras chamavam de “pão”. Quanto recebeu a farda da guarda civil então! Não dava conta de atender o “eleitorado”. Abelardo era o que se podia chamar de partidão. Descendente de italianos, mais de um metro e oitenta, pele alva, barba cerrada, cabelos lisos com nuances douradas. Puro de coração via no semelhante o espelho – confiava em todo mundo. Quando rendia o trabalho, chegava em casa casa todo orgulhoso com a impecável farda. Tirava-a com cuidado, pendurava para não amassar, lustrava os sapatos para o dia seguinte, colocava o quepe sobre a velha cômoda de imbuia. Em seguida esperava a mãe finalizar o jantar. Não bebia, nãofumava, ia religiosamente ã missa todos os domingos. - Abelardo, disse num fim de tarde um colega de trabalho da área administrativa, você pode me emprestar a sua arma? Abelardo estranhou o pedido, sabia que não poderia fazer aquilo em hipótese alguma. - Empresta Abelardo, preciso matar um cachorro louco que esta ameaçando toda a vizinhança. - Não posso! Mais Abelardo, você estará ajudando na segurança das pessoas o cachorro está lá ameaçando todo mundo, ( na época dos fatos em casos emergenciais que colocasse em risco as pessoas, especialmente cachorros loucos estes eram sacrificados para proteger a população). Ninguém vai saber que você me emprestou! Amanhã não e sua folga? Pois então! Mato o cachorro depois levo na sua casa, pode ficar sossegado. Tanto insistiu que Abelardo não resistiu, mesmo sabendo o ilícito que cometeria. No dia seguinte pensava acordar mais tarde, jogar bocha com os primos, ir à praça paquerar, convidar alguns amigos para seu aniversário – completaria vinte e seis anos. Nada disso aconteceu. Na madrugada foi acordado pela mãe com a notícia que no rádio passava repetidas vezes. "Funcionário da guarda civil assassina a jovem esposa com dois tiros". Abelardo gelou! Na hora se lembrou da arma que havia emprestado para o vizinho matar o tal cachorro louco. Dito e feito! Não havia cachorro louco coisa nenhuma! Armando usando a boa fé de Abelardo mentira. E com isso comprovado o empréstimo da arma, Abelardo foi expulso da corporação num ato público. Os clarins anunciavam a nova manhã no quartel. As oito horas em ponto, como imposto pela chefia, Abelardo entrou no pátio cabisbaixo sem saber o que aconteceria. Alguns minutos depois, no centro da quadra um dos superiores de Abelardo, como punição pela desonra praticada - o empréstimo da arma, emsilêncoi cortou uma tesoura um a um os botões dourados da casaca azul marinho. Em seguida ordenou perante todos que Abelardo a tirasse. Terminado o cerimonial saiu de camiseta branca chorando copiosamente. Fora expulso da corporação! Poucos meses após a tragédia nem de longe Abelardo lembrava o belo rapaz. Passou a perambular pela vizinhança totalmente desalinhado. Barba por fazer, roupas rotas, bebia, fumava exageradamente. Várias vezes embriagado foi recolhido das calçadas por pessoas caridosas ou colegas de boteco, quando o levavam para casa. Quando acabou o dinheiro catava bitucas de cigarros no lixo. Inúteis foram os esforços da família na tentativa de recuperá-lo. Quando chegada embriagado a primeira coisa que pedia para a mãe eram as fotografias – as dele fardado. Chorava a mais não poder. Perdeu totalmente o centro, virou indigente. Sábado de carnaval – Abelardo acordou como de costume meio atordoado - ressaca do dia anterior. Rejeitou o café. No entanto, tomou banho, fez a barba, colocou roupas limpas. A mãe que não conseguia assimilar a maldade tamanha praticada contra seu filho, estranhou a mudança repentina, pensou consigo mesma – graças a Deus ele está reagindo. Precisou sair para as compras da semana em uma cooperativa próxima. - Abelardo não vai sair hoje? - Mãe, me deixa sossegado... No bairro não havia coletivos, Dona Assunta foi a pé, andaria uns cinco quarteirões – caminho puxado, subida. Quando voltava com as duas pesadas sacolas de lona, viu a frente de sua casa tomada pelos vizinhos. - Meu Deus! O Abelardo! Viu o sangue respingado na soleira de cimento queimado na entrada da casa. Não queriam deixá-la entrar. Dotada de uma força repentina sem que as pessoas pudessem contê-la invadiu a própria casa. As paredes da pequena cozinha caiada de branco, do teto ao piso todas borrifadas de sangue. Como os botões durados que foram arrancados um a um da casaca azul marinho Abelardo, não suportando a desonra a que fora submetido ceifara a própria vida. (Ana Stoppa) (Baseado em fatos reais, anos 70) Ana Stoppa
Enviado por Ana Stoppa em 21/06/2012
Alterado em 20/03/2017 Copyright © 2012. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |