Ana Stoppa - Escritas, Versos & Reversos

Se não puder alcançar as estrelas agradeça a Deus por vê-las. (Ana Stoppa)

Textos

 

Efetivamente não escolhera a solidão, quando  a pressentia arranjava um jeito de despachá-la, estendia a agenda, esticava o trabalho, dormia pouco.

       No leito vazio o cansaço era tanto que nem boa noite lhe dava, robotizara-se, gradativamente vestiu a armadura da indiferença.

    Desconhecia a imagem refletida no espelho, o coração se acostumara aos expedientes adotados.

    Ao primeiro sinal de carência – trabalho e mais trabalho, distante das emoções, olhar ressequido, lágrimas ausentes.

    Vez ou outra transitava veloz nas lembranças de um tempo em que sentiu no peito o palpitar do afeto.

    Bobagem – dizia para si mesmo.

    Quando a alma timidamente ousava despertar aplicava-lhe o sonífero das desculpas.

     Aromas, cores, gostos, movimentos, melodias, sinfonias, afeto, ternura, encanto...

    Riscara estas palavras do dicionário, literalmente carregava as baterias apenas para seguir a rotina..

    Gradativamente os amigos se foram.

    Efetivamente não escolhera a solidão.

    Seguia robótico, vida quadrada desprovida de emoção.

    Compromissos regiamente anotados impediam o registro do tempo fugaz.

    Amealhou altas somas, acreditando que absolutamente tudo dependeria do vil metal.

    Nos fragmentos de lucidez planejava encontrar um amor, construir família, ter um tempo para si.

    Entretanto, rapidamente sufocava os planos, pois precisava ser ágil para despachar a tal solidão.

    No íntimo achava tudo uma grande bobagem.

    A armadura mostrou-se frágil quando um mal súbito tirou-o do trabalho.

    Ordem médica – repouso.

    Um mês de afastamento, consultas e mais consultas, medicamentos, exames.

    Na segunda semana ficou sabendo que a empresa contratara alguém para substituí-lo.

    O problema renal diagnosticado obrigava-o a ficar horas em absoluto repouso.

    Pela primeira vez percebera o inadiável encontro consigo mesmo.

    A imagem no espelho...

    Quem era?

    Um desconhecido!

    Procurou a agenda, não a de compromissos, estava impossibilitado de trabalhar.

    Queria a agenda telefônica amarelada pelo tempo, páginas semi  coladas ante ao desuso.

    Desconhecia os  vizinhos de condomínio, embora residisse há mais de duas décadas no local.

    Admitiu pela primeira vez que precisava do próximo.

    Deixou-se levar pela solidão - aquela que se esquivara a vida toda.

    Parentes distantes, amigos perdidos, ignorado no trabalho...

    Precisava de alento, solidariedade, ombro amigo.

    As altas somas não lhe socorreriam.

    Encontrou enfim a agenda avariada, páginas desordenadas, índice confuso.

    Alguns números com  os prefixos alterados, outros mudaram os assinantes.

    Lembrou-se de Eliza, colega dos tempos de faculdade.

    Acendeu a opaca chama da esperança.

    Ligou...

    - Eliza, indagou a voz do outro lado da linha...

    - Sim Eliza, diz pra ela que é o Eduardo, seu colega de turma do curso de Física.

    Um momento, por favor – disse a interlocutora...

    Diante da demora desligou o telefone para em seguida tentar falar com a tal Eliza.

     - Por favor, disse novamente, quero falar com a Eliza, a senhora é a mãe dela?

    Imagino que Eliza deva estar trabalhando, sem problemas, poderia,  por favor, anotar o número de meu telefone?

    Diz pra ela que é o Eduardo, seu colega de turma do curso de Física, afoito não dava espaço para a interlocutora.

    - Sr. Eduardo....

    A senhora anotou meu número?

    Preciso muito falar com ela, cursamos a faculdade, sempre participamos dos mesmos grupos de estudo, é urgente, a Eliza é a minha melhor amiga, continuou,  não me leve a mal senhora, mais preciso falar com ela!

    Eduardo aos poucos caiu  em si diante do longo silêncio.

    - Sr. Eduardo, o senhor procura pela Dra. Elisa Antero?

    Sim, Eliza Antero, a Senhora é a mãe dela?

    - Não Sr. Eduardo, meu nome é Mariana, sou a  filha caçula de sua amiga.

    - Minha mãe Eliza faleceu há dezessete anos...

    Atônito sussurrou um muito obrigado para banhar-se no pranto contido.

    Paredes cinza, horas mortas, vida amorfa.

    Recorreu para às lembranças, viu-se na mais tenra infância.

    - Os tesouros materiais não nos socorrem.

    Maria Eugênia,  sua a saudosa avó materna costumava dizer isso.

    Eduardo lembrou-se da mãe ao pé do fogão de lenha, do cheiro do pão quente,do mugir do gado, o canto da  passarada.

    Os irmãos, os brinquedos improvisados, o banho no ribeirão, a pesca de lambaris, os passeios na quermesse, a escola de madeira, a bondosa professora...

    Os amigos...

    Pode ver nitidamente o pai chegar da lida  vestido com a suada camisa xadrez, calça remendada,  botinas  embarreadas na terra vermelha dos cafezais em flor...

    O fogo das lamparinas, a paineira florida, o colchão de palha, a velha colcha de retalhos, o pomar, o engenho, a família  reunida, os folguedos, a cantoria, a  viola, a sanfona, as rezas...

    Com os olhos rasos d’água, ensaiou a prece, Pai nosso que estais no céu...

    Efetivamente não escolhera a solidão.

    Precisava ter  pés no chão, como tratamento  médico e  repouso logo recobraria a saúde.

    -  Súbito lembrou-se da senhora que servia o café na empresa onde era Diretor, precisava de ajuda.

    A tal senhora trabalhava meio período na empresa, por certo poderia passar algumas horas prestando-lhe serviços – imaginou, ligou para a secretária.

- Sandra, boa tarde, como chama  aquela senhora que serve café?

    - Dona Jandira.

    A pobre senhora tremia  todas as vezes que  entrava na sala do imponente diretor, estava na empresa havia oito anos,  Eduardo  não sabia sabi ao seu nome!

    - Sandra, o médico me prescreveu repouso, será que a Dona Jandira pode vir aqui em casa dar-me uma mão  por estes estes  dias?

    - Falarei com ela Dr. Eduardo.

    Chame-a para  conversar  explica a situação, o imprevisto...

    Dona Jandira para a maioria dos funcionários era a simpática senhora  sempre de bom humor, aAo escutar o pedido de Sandra ficou atônita.


    - Mais  Sandra, como vou  à casa do Dr. Eduardo, ele nem me cumprimenta, tenho o maior medo dele!

Após muita conversa  ai final  concordou, na manhã seguinte lá estava na portaria do prédio se identificando para subir, os porteiros  ficaram curiosos, Dr. Eduardo  jamais recebera visitas, pediram os documentos, após alguns minutos  confirmaram o chamada.

    - A Senhora pode  ir  pelo elevador dos fundos – o de serviço.Mal passara da portaria recebeu o  novo comunicado do porteiro,  senhora, O Dr.   Eduardo pediu para a senhora subir pelo elevador  social.

    Subitamente debilitado  ele não via a hora de receber a visita, precisava mais do que ajuda, precisava de gente,  o repouso compulsório, a fragilidade  física e  o repensar repentino da vida despertaram valores de há muito sufocados.

    Recebeu a visita  desfigurado, pijamas, barba por fazer, chinelos, nem de longe lembrava o imponente executivo, Dona Jandira levou um susto.

    - A Sandra disse que estou precisando dos serviços da senhora?

    Sim  senhor – disse Jandira sem erguer os olhos.

    - O que tenho que fazer Dr. Eduardo?

    - Como é mesmo seu nome senhora?

    Dona Jandira – às suas ordens.

    Casa escura, desarrumada, geladeira vazia, sobre o balcão da cozinha uma carteira semiaberta, Dona Jandira nunca vira tanto dinheiro.

    No escritório quatro computadores – ainda ligados, na única parede vazia um quadro branco repleto de anotações.

    Sobre a mesa  pilhas de papeis desarrumados, misturados com dezenas de envelopes contendo correspondências bancárias.

    Na pia da cozinha restos de comida comprada pronta, nos porta-retratos apenas diplomas – muitos deles!

    - Dona Jandira,  falou docilmente com a visita, estou de repouso médico, preciso que  me faça algumas compras.

    Totalmente diferente do onipotente emendou...

    A Senhora veja o que falta na dispensa,  abra a carteira que está sobre o balcão,  pegue o dinheiro  que for preciso vai até o supermercado compre os ingredientes para fazer o almoço.

    Sem entender tanta amabilidade, pois aquela pessoa carente em nada lembrava o alto  Jandira executivo, obedeceu.

    Saiu às compras, quando retornou passava das onze da manhã.

Eduardo pediu-lhe que preparasse uma comida simples – arroz, feijão, ovo frito, bife, salada de tomates.

 

Jandira aceitou de bom grado, adorava cozinhar e mesmo entanto desambientada foi para o fogão.

 

Mas na moderna  cozinha  eram tantos equipamentos que a pobre mulher sequer conseguia ligar o fogão, tudo automatizado!

 

Passava do meio dia quando o  almoço ficou pronto, Jandira  estendeu sobre um canto da imensa mesa de jantar a primeira toalha que encontrou, apoiou as panelas quentes sobre pratos para não danificar, e o patrão acostumado a serviços esmerados com porcelanas, pratas e cristais combinados nos pequenos detalhes viu-se diante das panelas sobre a mesa...

 

- Está pronto Sr. Eduardo, pode vir almoçar,  Quer que eu prepare uma limonada?

 

A água francesa foi então substituída pelo suco com gosto de infância...


    - Dona Jandira, a senhora  é minha convidada,  pegue mais um prato e os talheres, sente-se, por favor, almoce comigo, faz muito tempo que faço as refeições sozinho.

 

Jandira atendeu, conversaram pouco. Eduardo repetiu o prato.

 

Ainda sem entender bem o que estava acontecendo sentia a comida descer apertando a garganta.

Ao terminar, a refeição Eduardo pediu que ficasse pois iria lhe servir o café. 

 

Surpresa aceitou a bebida quente, em  seguida adotou a mesma postura que praticava na empresa, abaixou a cabeça, desajeitada e surpresa  ao mesmo tempo tomou o café em silêncio.

    Dona Jandira passou a ir todos os dias para fazer os afazeres domésticos.

    Na segunda semana de tratamento Eduardo  soube que  seriam  necessários mais trinta dias de afastamento.

    Tempo precioso para curar mais que a matéria, para repensar valores e promover a  cura da alma.

    Assistido por Dona Jandira  Eduardo percebeu o valor inestimável da amizade, a importância em se cultivar os amigos, a insignificância do  ter quando o ser se revela abandonado.

    Nas prateleiras do ser  os bens mais preciosos jamais estiveram à venda – o afeto, a ternura, o carinho, a solidariedade, o amor, o respeito e  a simplicidade.

    Vida apressada, desconstrução  acelerado do eu robótico, Eduardo investiu tanto no ter, amealhou fortuna, status, poder, enquanto que o ser adormecerá até a eclosão das doenças.

    Esvaziados sentimentos  mostraram-se de vez, para que  o poder, o  ter?

    Para que? Perguntava-se na impositiva reflexão.

    Eduardo se entregara para o trabalho, para a sufocante agenda sempre à serviço de terceiros., agora percebia que a prioridade seria a sua vida.

    Não para ser nababescamente vivida, não era isso, mas sim a  vida para compartilhar, para viver com simplicidade, família, amigos, amor, solidariedade...

    - Dona  Jandira,a senhora conseguiria me dizer o  que  é felicidade, certa manhã indagou de surpresa para a fiel escudeira.

    - Assim Dr. Eduardo sem pensar, responder e pronto?

    - Sim, Dona Jandira.

    - Ah Dr. Eduardo, felicidade pra mim é poder ajudar o senhor, é estar aqui enquanto o senhor recobra a  sua saúde, eu  aprendi com minha família que encontramos a felicidade toda vez que nos colocamos à disposição daqueles que de nós necessitam.

    Eduardo  olhava atônito, pensava como era possível uma pessoa que
trabalhou com ele no mesmo ambiente por longos anos, de quem sequer o nome  se mostrou de  repente  solidária, mentalmente agradeceu a Deus pela enfermidade.

    Não fosse a doença jamais teria a oportunidade de repensar  a sua vida, do coração deixou brotar um muito obrigado acompanhado de duas grossas lágrimas.

    Aos poucos recuperou a saúde – especialmente a da alma, prioridades e agenda refeitas.

    A doença, as perdas assumidas, convivência com a simpática senhora, as  lembranças da origem, a descoberta da simplicidade,  o poder da prece
e a fé inabalável em Deus mudaram por completo sua postura.

    Mais que isso – percebera   a perenidade da vida, a insignificância do ter quando se abre mão do ser.

    Não precisaria mais do trabalho exaustivo, a vida pedia pressa, a solidariedade também.

    Quando da alta médica   iniciou a concretização dos projetos recém-elaborados  para  uma vida harmonizada com os preceitos divinos.

    Trabalho voluntário, tornou-se assíduo participante em várias instituições, decidiu aplicar  parte das economias  em prol dos semelhantes.

    Felicidade, encontrara   a felicidade imensurável no ser útil ao próximo, no compartilhar, no estender as mãos!

    À Dona Jandira coube indicar algumas comunidades  para receber os bens compartilhados  e o trabalho voluntário que Eduardo fazia desde então com um largo sorriso no rosto.

    Efetivamente  não escolhera a solidão...

Ana Stoppa
Enviado por Ana Stoppa em 06/08/2012
Alterado em 17/03/2014
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