Ana Stoppa - Escritas, Versos & Reversos

Se não puder alcançar as estrelas agradeça a Deus por vê-las. (Ana Stoppa)

Textos


Casarão


A chuva repentina no entardecer, impôs a busca de abrigo e a paciência, diante dos aplicativos congestionados. Restou a espera na saída do supermercado, com tempo para admirar a variedade de flores à venda e duas pesadas sacolas com destino lá em casa.

Foi a Tamires, a simpática operadora de um dos caixas quem deu-me a ideia. – A senhora pode chamar um Uber para atendê-la no estacionamento, assim escapa da chuva. Obrigada Tamires! Ideia de irmã! Por isso que gosto da intimidade respeitosa com os profissionais que nos atendem.

Faltando dois minutos para a chegada do veículo, prontamente o segurança separou as minhas duas sacolas, (antes da chuva pretendia fazer o caminho de volta a pé), pedindo permissão para colocá-las em um carrinho, em seguida preparou-se para conduzi-lo  até o estacionamento. O apressado benfeitor, desceu na minha frente a rampa de acesso. Ao final, um pouco antes da curva que encaminha para a garagem, dei de cara com a Neusa, minha amiga há algum tempo.

Nos conhecemos em um parque municipal, porém a Neusa circula por todas as partes da cidade. Escolheu o mundo como casa. Diz viver esta vida há mais de 20 anos. Está em busca de uma chance para seguir o padrão - emprego com carteira assinada, salário digno, moradia e respeito. – Difícil viu - comenta repetidas vezes, ninguém dá oportunidade.

-Estava com saudades de você princesa!

– Então me dá um abraço Neusa!

Rapidamente ela colocou no chão as toscas sacolas de plástico.
- Aqui está minha vida e minha casa, tenho que tomar cuidado, referindo-se a "bagagem".  Neusa  estava com o habitual sorriso, os olhos brilhantes, o par de brincos em forma de pequenos corações, uma correntinha.

Quando nos abraçamos confidenciou-me.

– Meu filho mora nos Estados Unidos, minha filha em Cordeirópolis e a mãe no Paraná. Fui visitar a filha dia destes, até que me arrumei, não estava suja assim. Não quer saber de mim.

– Mas você não está suja Neusa, que bobagem! Estou sim, mas deixa para lá né linda que a vida é para ser escrita com alegria. Estou alegre de te ver!

– Você quer alguma coisa do mercado?

– Não linda, já ganhei aqui bolacha, pão, leite, não precisa, e já ganhei de te encontrar! Vou ficar aqui mais um pouco vendo o movimento. Antes de terminar a fala, referindo-se ao supermercado sussurrou: - O segurança é bruxo, não me deixa entrar, o porteiro é bruxo também não me deixa entrar, você é fada, me dá atenção.

As pessoas têm medo e nojo de falar comigo, mas sei que no meio destas madames que passa ai com os carrinhos cheios de coisa boa, muitas são piores que eu! Eu tenho a rua e muitas dela a prisão. Prisão do dinheiro sabe linda, prisão de aguentar quem não quer, para o sustento e os luxos. Eu que não quero isso, prisão com homem, receber favor, Deus me livre, por isso gosto da rua.

Trocamos abraços, desci atrasada para entrar no Uber, ela acompanhou-me na rampa. Ao nos despedirmos lembrei-me do encontro anterior, ocorrido há cerca de uns 20 dias.

– Oi linda, tudo bem que bom te ver! Disse, levantando-se do banco do ponto de taxi, com um abraço pronto, assim quando me avistou chegando no mercado.

- Vamos prosear um pouco, me convidou para sentar-se ao seu lado no tal do banco com um amontoado de sacolas plásticas contendo suas roupas e um saco de lixo preto, protegendo a coberta.

Conversamos um pouco, perguntei se queria algo do supermercado, no que me respondeu; apenas um refrigerante, já ganhei dois sanduiches.

- E por que você carrega este monte de sacolas Neusa? São as minhas coisas, linda, não posso deixar debaixo dos papelões lá no cantinho onde durmo, nos fundos de uma pizzaria, tem gente que rouba. Olha só – disse abrindo o saco preto, ganhei esta coberta novinha, se eu deixar lá vou ter que dormir sem ela.

A peça,  importante para Neusa, na verdade estava bastante rota.

– Mas então o dono da pizzaria deixa você dormir lá?

- Sim ele é muito bom, eu limpo tudo sabe.

Que bom Neusa, então você tem uma cama lá?

- Cama?

- Cama nada minha linda, durmo no chão mesmo!

 Coitada!

- Coitada? Não bem! Não sou coitada, sabe por quê?


Porque Deus me dá o sono!

( baseado em fatos reais)
Ana Stoppa
Enviado por Ana Stoppa em 07/08/2020
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